Com a aproximação das eleições municipais, que acontecerão em 15 e 29 de novembro em todo o Brasil, o debate acerca dos crimes eleitorais ressurge. O Código Eleitoral, que existe desde 1965, é responsável por regulamentar as eleições para cargos políticos e está em constante adaptação. No ano passado, por exemplo, foi adicionada a lei sobre fake news, tendo em vista que o fenômeno passou a fazer parte da nossa realidade. Em entrevista ao Jornal da Lei, Marcos Eberhardt, advogado e professor de Direito Penal na Pucrs, contextualiza alguns tópicos desse debate.
Jornal da Lei – Quais são as acusações mais recorrentes de crimes eleitorais?
Marcos Eberhardt – Nas eleições de 2018, conforme o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), as condutas ilícitas mais recorrentes foram a prática de boca de urna, a compra de votos e as propagandas eleitorais irregulares. Essa circunstância representa uma cultura vergonhosamente desrespeitosa à democracia. No tocante à responsabilização de candidatos eleitos, estes poderão ser alvo de Ações de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE). No caso, será avaliada judicialmente se a conduta atribuída ao candidato configurou abuso do poder político e/ou econômico, hipótese em que deverá ficar comprovada a repercussão social relevante no contexto da disputa e prejuízo à normalidade do pleito.
JL – Para o senhor, faltam mecanismos de controle internos rígidos das candidaturas ou é uma questão de cultura?
Marcos Eberhardt – Acredito que se trata de uma soma de fatores, sendo difícil afirmar aquele que prepondera. O que se pode dizer é que a formação de uma cultura de prevenção também passa pela implementação de mecanismos e procedimentos internos de integridade, incentivando a denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta por partidos políticos e coligações para eleições majoritárias. Nessa frequência, os mecanismos de compliance estão cada vez mais usuais e devem frequentar a pauta diária dos candidatos, ainda mais em tempo de pandemia.
JL – Tendo em vista que esses crimes ocorrem com frequência no Brasil, o senhor acredita que o problema dos crimes eleitorais está na legislação ou na aplicação e fiscalização da lei?
Marcos Eberhardt – Em primeiro lugar, é importante lembrar que não temos confirmação prática de que o endurecimento de penas possa contribuir para a diminuição da criminalidade. O mais interessante, nesse ponto, é que os discursos políticos normalmente buscam abrigo no simbolismo do aumento de penas e na criação de novos tipos penais como soluções ao caos da segurança pública. O mesmo acontece com o legislativo. No Brasil, temos uma inflação penal legislativa e somos o País, em números absolutos, que mais prende. A conta não fecha. Ou seja, com certeza não será pela via legislativa, com o aumento das sanções, que iremos combater a criminalidade. De outro lado, referente à fiscalização dos crimes eleitorais, nota-se, nos últimos anos, um fortalecimento dos órgãos de fiscalização que ocorre antes, durante e depois do pleito. Não há dúvida que a tecnologia e a velocidade na comunicação entre os órgãos de segurança com a Justiça Eleitoral contribuíram para este cenário de garantia constitucional.
JL – Disseminar desinformação com objetivo de prejudicar ou agredir um candidato, assim como manipular eleitores, é considerado crime, de acordo com a Lei nº 13.834/2019. Como uma gestão de campanha deve se prevenir em termos de conteúdo digital para não incorrer no crime de fake news?
Marcos Eberhardt – Temos muitos exemplos pelo mundo de que a multiplicação de notícias falsas tem potencial para influenciar o pleito eleitoral, o que gerou iniciativas jurídicas na mesma proporção. Na prevenção, há uma série de orientações para a identificação de uma fake news, tarefa que nem sempre é simples. A avaliação a ser realizada pelos candidatos e suas equipes deverá seguir, no mínimo, o binômio: responsabilidade na verificação e veracidade dos fatos e que a veiculação da mensagem não ultrapasse a crítica eleitoral, que faz parte das “regras do jogo”, evitando, assim, a configuração de difamação eleitoral. Evidentemente que a criação de mecanismos de controle é um desafio, inclusive financeiro, numa gestão de campanha, mas será um fator de, pelo menos, redução de eventual penalidade ou afastamento de responsabilidade criminal.
JL – Às vésperas do início da campanha eleitoral, a Procuradoria-Geral Eleitoral orientou procuradores regionais Eleitorais e procuradores-gerais de Justiça de todo País a expedirem recomendações a partidos políticos e candidatos para que, no período de campanha e no dia das eleições 2020, eles observem e cumpram as medidas necessárias à prevenção de contágio pelo novo coronavírus. As equipes de campanhas são compostas por inúmeras pessoas com visões diferentes, inclusive sobre a pandemia. Qual a orientação para quem minimiza as possibilidades de denúncia e pretende realizar campanha do modo tradicional?
Marcos Eberhardt – Ultrapassamos muitas barreiras nos últimos meses. Aqueles que tiveram a possibilidade de trabalhar remotamente mudaram hábitos e rotinas completamente. Nessa altura, não há mais janela para questionamentos às medidas de prevenção à contaminação. Independentemente de opiniões pessoais, que devem ser respeitadas, a melhor estrada a seguir é aquela que se alinha com a saúde e bem-estar de todos e todas, principalmente daqueles que trabalharão na campanha eleitoral ao lado de seus candidatos.
JL – Em julho, o Tribunal Superior Eleitoral decidiu que não retiraria do cargo prefeitos condenados por crimes eleitorais, para não atrapalhar as políticas de combate à pandemia e porque novas eleições causariam risco à saúde pública. No entanto, voltou atrás no entendimento, no mês seguinte, e determinou a execução imediata do afastamento dos prefeitos e vice-prefeitos condenados. Essa mudança gerou instabilidade na interpretação da jurisprudência?
Marcos Eberhardt – Na retomada das sessões do segundo semestre, convivemos com uma situação um pouco diferente da até então enfrentada no tocante às estratégias de combate à pandemia. Em agosto, o próprio TSE se preparava para as eleições municipais editando normas de segurança sanitária e cronogramas operacionais. Ou seja, o reposicionamento do TSE busca a plena aplicação do disposto pela “Minirreforma Eleitoral”, que passou a prever, no Código Eleitoral, a regra da eleição indireta, no caso de prefeitos, a ser votada pela Câmara de Vereadores, quando a vacância do cargo ocorrer a menos de seis meses do final do mandato. A eleição indireta foi amplamente debatida pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.525, que, ao fim, considerou válida esta previsão legislativa. Não avalio instabilidade da jurisprudência, considerando as circunstâncias que motivaram a primeira tomada de decisão pelo TSE. Contudo, nesse tempo de retomada, há um novo cenário na condução das políticas de combate à pandemia, lembrando que a eleição indireta, conduzida pela Câmara de Vereadores, reduz a movimentação de pessoas, tornando-se mais adequada ao momento.
JL – Mais de 10 chefes de executivos estaduais e municipais estiveram envolvidos em processos de pedido de impeachment, como os governadores de Rio de Janeiro e Santa Catarina, e os prefeitos de Porto Alegre e Belo Horizonte, por exemplo. Alguns processos foram arquivados e outros seguem em tramitação. Os dados das denúncias são, em sua maioria, colhidos do Portal de Transparência. Qual sua avaliação sobre essa ferramenta? Acredita que em 2021 a onda de pedidos de impeachment pode aumentar?
Marcos Eberhardt – Especificamente no caso de prefeitos, o rito do processo de impeachment está previsto no Decreto-Lei nº 201/1967. Trata-se de uma legislação que, no meu ponto de vista, não dialoga com a realidade. Ou seja, para aferir a responsabilidade político-administrativa em determinado ato, a legislação deveria assegurar a ampla defesa e o contraditório por parte do acusado. No entanto, o que vemos é um processo que pode ser instaurado a partir de maioria simples da Câmara de Vereadores e que deverá terminar em prazo exíguo de 90 dias. No tocante aos requisitos formais da denúncia, a legislação não prevê barreiras para avaliação da admissibilidade da acusação. Estamos na contramão, e isso certamente contribui para que denúncias vazias deem início a um processo de cassação que, salvo melhor juízo, é o que ocorre em Porto Alegre. Nesse caso, é possível afirmar, inclusive, que a ausência de fatos determinados dificulta ou até impede a defesa do prefeito Nelson Marchezan. Lembro, ainda, que o chefe do Poder Executivo, muitas vezes, perde o apoio político da Câmara de Vereadores e basta que um fato – supostamente – ilícito seja trazido à tona para que seja responsabilizado e definitivamente cassado. Ou seja, a ausência de requisitos formais é ambiente propício para a multiplicação de processos de cassação. Nas últimas eleições, verificamos que as redes sociais e as novas tecnologias ocuparam papel fundamental na disseminação de informações e, sem dúvida alguma, tiveram sua parcela de responsabilidade no índice renovação que alcançou 47% na Câmara dos Deputados. Ou seja, estamos diante da maior renovação política desde a Assembleia Constituinte. No entanto, há um cenário de instabilidade política em determinados estados e municípios, nos quais, por vezes, a “base aliada” do governador ou prefeito se esvaziou em poucas horas. Assim, inúmeras alianças foram quebradas no primeiro ano de mandato e, para as eleições municipais que ocorrerão neste ano, notamos ampla utilização da “janela” para troca de partidos. Numa análise geral, é possível notar uma configuração semelhante de alianças frágeis que poderão se realinhar a qualquer tempo no curso do mandato daquele que for eleito.
Marcos Eberhardt acredita que falta cultura de prevenção. FOTO: CLAITON DORNELLES/arquivo/JC
Por: Marcos Eberhardt
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