CONJUR – Duas lições do ano de 2020 sobre a prisão cautelar

As últimas décadas foram especialmente marcadas por constantes e relevantes modificações na legislação processual penal dos países latino-americanos, chegando o momento do Brasil, com a denominada lei “anticrime”. Além da guinada em busca de uma estrutura puramente acusatória através da previsão expressa do artigo 3º-A do Código de Processo Penal e de outros importantes avanços no processo penal brasileiro, a Lei nº 13.964/19 provocou significativas alterações no capítulo destinado às medidas cautelares pessoais, dos quais se destacam: 1) a impossibilidade da decretação da medida ex officio durante a ação penal; e 2) a revisão periódica da segregação preventiva pelo julgador.

A primeira alteração, ao vedar ao juiz a iniciativa de impor medidas cautelares que restrinjam direitos do indiciado ou acusado, conforme dispõe o artigo 311, caput, do CPP, vai ao encontro da opção expressa de um modelo processual penal de cariz acusatória (artigo 3º-A do Código de Processo Penal), impossibilitando que o magistrado substitua o titular da ação penal [1]. Por conseguinte, o que antes da Lei nº 13.964/19 era resultado de uma interpretação constitucional do processo penal em conformidade à estrutura de um Estado democrático de Direito, passou a ser um mandamento formal disciplinado na legislação infraconstitucional.

A segunda inovação legislativa deriva da inclusão do parágrafo único do artigo 316 do CPP, que prescreve a obrigatoriedade legal do magistrado revisar a imprescindibilidade da prisão preventiva a cada 90 dias, a despeito de qualquer provocação das partes, sob pena de torná-la ilegal. Dissertando sobre a provisionalidade das medidas de cunho cautelar no processo penal, Giacomolli explica que, por serem embasadas em uma situação fática e concreta que indica sua necessidade, são cabíveis apenas enquanto perdurar a conjuntura individualizada utilizada como fundamento para sua decretação [2]. Na mesma perspectiva, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, a partir de decisão no Case of McKay v The United Kingdom (Application nº 543/03), estabeleceu que “as cortes domésticas são obrigadas a revisar, automaticamente e sem a provocação do detido, a pertinência ou não da manutenção de detenção provisória, garantindo a revogação da medida quando as circunstâncias não mais justificarem a medida” [3].

A partir de 2020, portanto, conforme dispõe o parágrafo único do artigo 316 do Código de Processo Penal, a necessidade de permanência da prisão deverá ser revisada a cada 90 dias, independentemente de provocação de qualquer uma das partes. Ainda, conforme assevera Giacomolli, é defeso ao magistrado simplesmente anunciar a permanência da necessidade da medida ou daqueles motivos que a ensejaram, pois faz-se necessária uma decisão fundamentada sobre a necessidade da grave medida e do descabimento das medidas alternativas do artigo 319 do Código de Processo Penal [4].

Nessa esteira, o intento legislativo de compelir o julgador a reanalisar a condição fática do sujeito submetido à medida para aferir se, no lapso temporal desde a última manifestação, não sobreveio mudança concreta que enseje a revogação da cautelar é perceptível e louvável; dado que a manutenção de restrição à liberdade quando desaparecidos seus requisitos ou fundamentos é tão ilegal quanto a decretação de uma prisão de maneira arbitrária, sem fundamentação fático-processual específica. 

Inobstante, não basta apenas modificar a estrutura normativa — com reformas parciais — se nossos atores jurídicos foram forjados pelas fontes da década de 1940 e até hoje mantém circulando a cultura inquisitória que permeava o Código de Processo Penal Rocco [5]. Nossas modificações legislativas sempre demandaram amadurecimento dos julgadores. E o instituto da prisão não foge à regra, mormente pela postura encarceradora dos atores jurídicos e da população em geral, a qual, inexoravelmente, influencia diretamente na interpretação e aplicação dos novos comandos normativos, acarretando — como ocorrera com a reforma da Lei nº 12.403/11 [6] — na inversão dos objetivos de uma reforma ou até sua inaplicabilidade na law in action. Como se não bastasse, no início de 2020 somou-se a esse cenário a contundente pandemia da Covid-19, a qual forçou as instituições a puxarem o freio de mão perante a nova situação de pânico coletivo, a qual poderá, ainda que de forma velada, produzir mais justificativas para restrição da liberdade dos indivíduos [7] em cenários que façam interpretações reducionistas da reforma promovida pela Lei 13.964/2019.

Nesse sentido, podemos verificar, a partir das decisões emanadas pelos tribunais superiores, ao menos duas inconsistências relacionadas às inovações propostas no instituto da prisão cautelar através da lei “anticrime”, que poderíamos enunciar como as “as duas lições sobre 2020 sobre a prisão cautelar”, quais sejam: 1) o posicionamento divergente da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal acerca da conversão ex officio da prisão em flagrante; e 2) o julgamento do Habeas Corpus nº 191.836/SP e o enfraquecimento da revisão periódica da prisão processual.

Enquanto “primeira lição de 2020”, constata-se posicionamento divergente entre os tribunais superiores acerca da possibilidade de decretação da prisão preventiva quando decorrente de prisão em flagrante, sendo relativizada a necessidade de requerimento pelo Ministério Público ou representação da autoridade policial. Em pesquisa realizada no repositório virtual de jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e em atenção ao Informativo de Jurisprudência nº 682 de 2020, verifica-se que a 6ª Turma permanece decidindo pela legalidade da conversão da prisão em flagrante firmando o seu posicionamento a partir de precedentes anteriores à lei “anticrime”, afastando a nova redação disposta ao artigo 311 do Código de Processo Penal.

Para melhor ilustrar o fenômeno de polarização acerca da conversão da prisão em flagrante em preventiva, adentra-se ao entendimento do ministro Rogério Schietti Cruz, em seu voto no julgamento em Habeas Corpus nº 583.995/MG, em sessão da 6ª Turma do STJ. Na ocasião, o magistrado referiu que a situação de flagrância da conduta ensejaria notória urgência, em situação diversa da disposição trazida pela lei “anticrime” no tocante às medidas cautelares [9]. Em sentido diametralmente oposto ao que vinha se consolidando em seus acórdãos e decisões monocráticas, no mês de outubro de 2020, a 5ª Turma do STJ alterou o seu posicionamento, fixando a tese da inadmissibilidade da conversão de prisão em flagrante para preventiva, conforme julgamento do Habeas Corpus nº 590.039, o que acabou recrudescendo a divergência entre as decisões das cortes superiores. Nesse caso, em sua decisão, o ministro Ribeiro Dantas revela que “parece evidente a intenção legislativa de buscar a efetivação do sistema penal acusatório, vontade explicitada, inclusive, quando da inclusão do artigo 3º-A no Código de Processo Penal, que dispõe que o processo penal terá estrutura acusatória (…)”.

Em período anterior, e servindo como precedente para recente decisão da 5ª Turma do STJ, o Supremo Tribunal Federal preservava o entendimento pela inviabilidade da prisão ex officio, ainda que decorrente da prisão em flagrante [10]. Ou seja, era possível atestar que ambas as turmas criminais do STJ possibilitavam a conversão do estado de flagrância em prisão preventiva e, a partir das novas decisões do mês de outubro deste ano, houve o reposicionamento da 5ª Turma em relação à matéria, ensejando novas perspectivas para a novel disposição do artigo 282 do CPP.

No tocante à “segunda lição de 2020”, enuncia-se como ponto marcante o enfraquecimento do recém inaugurado instituto da revisão periódica. Importa observar que a revisão da prisão processual atenderia ao princípio da provisoriedade que, conforme Schietti, nada mais é do que o enaltecimento de que a medida cautelar trata-se de uma de caráter provisório, “porquanto é estrutural e funcionalmente caracterizada como instrumental” [11].

Em decorrência do julgamento do Habeas Corpus nº 191.836/SP, por maioria, o Supremo Tribunal Federal considerou que o prazo da revisão periódica imposto pelo artigo 316, parágrafo único do CPP, não se trata de “prazo prisional, mas prazo fixado para a prolação da decisão judicial” [12]. Nesse sentido, há o pleno enfraquecimento do dispositivo introduzido pela lei “anticrime”, ou seja, ainda que de conhecimento público que o Poder Judiciário se encontra em um período de saturação de demandas urgentes, superdimensionado no contexto de pandemia frente à segurança pública, o afastamento de uma previsão expressa que impõe o limite temporal para reavaliação da prisão provisória encontrava-se em pleno alinhamento à presunção de inocência e ao princípio da duração razoável do processo.

Desse modo, a lei “anticrime” vem sofrendo, por meio dos julgadores, com entendimentos conflitantes com tendência para redução de efeitos das proposições firmadas pela reforma parcial ao Código de Processo Penal. Acertadamente, Madera considera que a obrigatoriedade da revisão periódica da prisão se tornou um dever estéril, ou uma letra morta [13] e, enquanto isso, a nulidade da decisão cautelar ex officio vem sofrendo com posicionamentos divergentes entre as cortes superiores. No entanto, especificamente neste ponto, vislumbra-se a consolidação de entendimento consonante com o novo dispositivo introduzido ao CPP, tornando nula a decisão que converter a prisão em flagrante em preventiva sem o requerimento da parte acusatória.

É possível denotar no ano de 2020, portanto, a partir dessas “duas lições sobre a prisão cautelar”, que o surgimento de mais uma reforma parcial na legislação processual penal brasileira foi, outra vez, manipulada pela hermenêutica dos aplicadores do Direito satisfeitos com o status quo da lógica processual com raízes autoritárias. Coutinho, pois, continua com a razão ao advertir que se terá que “esperar a mentalidade sofrer o câmbio que precisa; e até lá seguimos rezando para os estragos serem os menores possíveis” [14].

Por Felipe Giacomolli e Marcos Pippi

 

[1] CRUZ, Rogerio Schietti. Prisão Cautelar: dramas, princípios e alternativas. 5. ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2020. p. 330.

[2] GIACOMOLLI, Nereu Jose. Prisões, liberdade e cautelares pessoais: nova formatação a partir de 2020. São Paulo: Marcial Pons, 2020. p. 34-35.

[3] CrEDH, Case of McKay v. The United Kingdom (Application nº 543/03). Grand Chamber, parágrafos 34 e 45. Julgado em 3 de outubro de 2006. Disponível em: <https://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-77177>. Acesso em 24 de out. de 2020.

[4] GIACOMOLLI, Nereu Jose. Prisões, liberdade e cautelares pessoais: nova formatação a partir de 2020. São Paulo: Marcial Pons, 2020. p. 113.

[5] Vide GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e Processo Penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro. v. 1. 1 ed. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018.

[6] Em panorama dos três anos posteriores à promulgação da Lei nº 12.403/2011 e seus impactos no sistema carcerário brasileiro, Choukr denuncia a manutenção do padrão inquisitivo de técnica procedimental e dos padrões culturais dos atores jurídicos no sistema penal em: CHOUKR, Fauzi Hassan. As Medidas Cautelares Pessoais no Processo Penal Brasileiro: panorama dos três anos da lei n. 12.403/11, em Giacomolli, Nereu José (Org.). Prisão Cautelar e Medidas Alternativas ao Cárcere: anais do IV encontro nacional do Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal — IBRASPP. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. p. 49-71.

[7] Ainda segundo Giacomolli, “pós-Covid-19, o medo que jazia nas entranhas da decisão que decretava a prisão preventiva, aguçado e exteriorizado na quarentena, fatalmente, mesmo que de forma oculta, se consubstanciará nas decisões” (Giacomolli, Nereu José. Acerca do Processo Penal a partir da Covid-19: reflexões, em Giacomolli, Nereu José (Org.). Ciências Criminais e Covid-19. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020. p. 23).

[8] Giacomolli, Nereu José. Prisões, liberdade e cautelares pessoais: Nova formatação a partir de 2020. São Paulo: Marcial Pons, 2020. p. 88.

[9] Conforme voto do ministro Rogério Schietti Cruz: “Há de se pontuar, no entanto, a diferença, que em meu entender se mostra visível, entre a decisão judicial que decreta uma prisão preventiva, ou qualquer medida cautelar, pessoal ou probatória, e a que converte, por força de comando legal, a prisão em flagrante em alguma(s) medida(s) cautelar(es), inclusive a prisão preventiva, a mais gravosa entre todas. Nesta última, o autuado foi preso em flagrante delito e trazido à presença da autoridade judiciária competente após a lavratura de um auto de prisão em flagrante, como determina a lei processual penal. (…)” (HC nº 583995/MG, relator para acórdão: ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 15/9/2020).

[10] STF. HC nº 186.421. Rel. Min. Celso de Mello. Julgado em 17/07/2020. Dje-182, Public 22/07/2020 e HC nº 191.042/MG. Rel. Min. Edson Fachin. Julgamento em 21/09/2020. Dje-234, publicado em 23/9/2020.

[11] CRUZ, Rogerio Schietti. Prisão Cautelar: dramas, princípios e alternativas. 5. ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2020. p. 111.

[12] Cf. Voto do ministro Luiz Fux: “Portanto, a ilegalidade decorrente da falta de revisão a cada 90 dias não produz o efeito automático da soltura, porquanto esta, à luz do caput, somente é possível mediante decisão fundamentada do órgão julgador, no sentido da ausência dos motivos autorizadores da cautela, e não do mero transcorrer do tempo” (STF. Referendo na medida cautelar na suspensão da liminar nº 1.395/SP. Relator: Min. Luiz Fux).

[13] “De fato, se os princípios da excepcionalidade, da provisoriedade e da provisionalidade, que norteiam o regramento cautelar pessoal no nosso ordenamento processual, fossem efetivamente observados, sequer seria necessário exigir-se a renovação periódica do decreto mediante fundamentação concreta e individualizada. A intenção do legislador de evitar a perpetuação da segregação provisória, sob pena de ilegalidade, pode ter se tornado, em pouco mais de oito meses de vigência da Lei 13.964/2019, em letra morta de lei” (MADERA, Mariana. O estéril dever de revisão da manutenção da preventiva no prazo de 90 dias, em Revista Consultor Jurídico. 08 de outubro de 2020. Disponível em: <https://cutt.ly/CgQBQPn>. Acesso em 10/10/2020).

[14] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Lei nº 12.403/2011: mais uma tentativa de salvar o sistema inquisitório brasileiro, em SILVEIRA. Marco Aurélio Nunes da; PAULA, Leonardo Costa de (Orgs.). Observações Sobre os Sistemas Processuais Penais. vol. 1. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2018. p. 154.

Por: Marcos Pippi
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