Autor: Rafael Zottis Lucio e Patrícia Alcalde Varisco
O intenso recrudescimento do fenômeno da violência que atinge a sociedade contemporânea implica uma sensação de constante insegurança, a qual gera, entre outros reflexos, a criação e aplicação de leis penais sem a observância de determinados princípios basilares, deixando à margem os preceitos constitucionais que deveriam guiá-las. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, os princípios nela consagrados passaram a reger todas as relações jurídicas, produzindo grandes reflexos no âmbito do Direito Penal. Dessa forma, não se pode olvidar que o direito fundamental à liberdade somente poderá ser mitigado diante de perigo de lesão ou lesão a outros direitos considerados como fundamentais pela sociedade para seu desenvolvimento.
No caso específico dos crimes econômicos, a Lei 7.492/1986, que define os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, foi inicialmente editada pelo legislador visando à tutela da integridade e higidez do Sistema Financeiro Nacional com o fim de preservar a sua credibilidade perante a sociedade brasileira.
Nesse contexto, tomando como ponto de partida a noção do bem jurídico consagrado no art. 192 da CF, ao se examinar a conduta tipificada no art. 19 da Lei 7.492/1986, qual seja a de “obter, mediante fraude, financiamento em instituição financeira”, denota-se que esse tipo penal busca resguardar o interesse social, representado pela confiança recíproca que deve existir nos relacionamentos patrimoniais individuais e comerciais no Sistema Financeiro Nacional, bem como o interesse público de coibir atos fraudulentos que ocasionem dano às instituições financeiras e ao sistema como um todo.
Desse modo, ao aplicar o referido artigo ao caso concreto, deverá o magistrado perquirir acerca da conveniência da tutela a ser exercida, de forma que seja proporcional à necessidade de proteção do bem jurídico, reforçando o caráter subsidiário e fragmentário de um Direito Penal que se limita a proteger somente aqueles bens jurídicos relevantes e que condiciona tal intervenção a uma efetiva lesão ou perigo concreto de lesão a este bem.
Tal ponderação é necessária diante da costumeira confusão entre o bem jurídico constitucional de natureza transindividual e coletiva protegido pela Lei 7.492/1986 com os interesses patrimoniais das instituições que o compõe, o que acaba por gerar a errônea aplicação do crime de obter financiamento em instituição financeira mediante fraude.
Assim, não obstante tratar-se o tipo do art. 19 da Lei 7.492/1986 de crime formal, o Princípio da Lesividade – culminado na máxima nullum crimen sine iniuria – exige que a conduta praticada pelo agente ofereça um mínimo de potencialidade de dano efetivo ao bem jurídico tutelado, neste caso, ao Sistema Financeiro Nacional.
Dessarte, no caso de ser estimada como irrisória ou insignificante a soma dos valores levantados no financiamento se confrontados com as quantias geradas pelo Sistema Financeiro Nacional, a observância e a aplicação do Princípio da Ofensividade conduzem à orientação de que não subsiste lesão ao bem jurídico Sistema Financeiro Nacional, mas somente ao patrimônio individual da instituição financeira, o que implica absoluta atipicidade material.
Seguindo essa tendência, o Tribunal Regional Federal da 4.ª Região(1) vem decidindo que não é possível penalizar conduta que não provoque efetiva ameaça à higidez do Sistema Financeiro Nacional, ou que esteja protegida por outras normas penais previstas no Código Penal, aplicando o entendimento de que a tutela penal contra a criminalidade financeira somente se justifica, sob a perspectiva constitucional, diante da ocorrência de uma lesão contrária aos interesses da coletividade, já que o bem jurídico salvaguardado pelo ordenamento legal não é o patrimônio da instituição financeira, mas a confiança daqueles que disponibilizam as suas economias à administração dessas instituições.
Não é objeto do presente estudo estabelecer um critério de quantificação da significância da soma dessas rubricas. É relevante, contudo, mencionar como base para um norte referencial a informação divulgada pelo Banco Central do Brasil, em nota à imprensa(2) datada de 26.03.2014, cujo teor revela que no mês de fevereiro do mesmo ano o crédito alcançado ao setor privado totalizou R$ 2.575 bilhões. Dessa feita, na hipótese de os valores relativos ao delito serem considerados como irrelevantes se proporcionalmente comparados a esses e, portanto, incapazes de abalar a confiança da sociedade no Sistema Financeiro Nacional, o fato será atípico.
Não ignoramos que a lesão ao bem jurídico em destaque pode ocorrer na hipótese deste financiamento envolver valores de grande monta, o que ponderamos é que se a conduta não lesionou ou colocou em perigo de lesão o bem jurídico coletivo tutelado pela norma penal, ou seja, se os valores levantados não possuem potencialidade lesiva suficiente para representar uma ofensa ao Sistema Financeiro Nacional, não há violação à Lei 7.492/1986.
Portanto, ao aplicar-se norma com sanções punitivas altas para casos em que sequer o bem jurídico foi posto em perigo é não somente uma violação ao Princípio da Proporcionalidade e da Lesividade, mas também um quadro de não recepção da Lei 7.492/1986 quando esta for aplicada em situações que não causem prejuízo à higidez do Sistema Financeiro Nacional.
Residualmente, nos casos em que os valores financiados representarem uma lesão ao patrimônio individual da instituição financeira, caberá ao magistrado realizar a desclassificação do delito de crime contra o Sistema Financeiro Nacional para os crimes que tutelem o patrimônio privado, como o delito de estelionato previsto no art. 171 do CP.
É certo que uma análise ainda mais acurada à luz do princípio da lesividade revelaria uma série de condutas existentes em nossa legislação cuja criminalização sequer deveria fazer parte do arcabouço de leis penais. No caso do art. 19 da Lei 7.492/1986, porém, não é necessário acatar uma tese mais radical, tomando o Princípio da Lesividade como limitação de base constitucional à criação de tipos penais pelo legislador, bastando que seja aceito como princípio geral na interpretação e na aplicação da lei penal por parte do magistrado.
Referências:
Bittencourt, Cezar Roberto; Breda, Juliano. Crimes contra o sistema financeiro nacional e contra o mercado de capitais. São Paulo: Saraiva, 2014.
Nucci, Guilherme de Souza. Manual de direito penal. São Paulo: RT, 2009.
Prado, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição. São Paulo: RT, 2013.
Roxin, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do direito penal. Org. e trad. André Luís Callegari; Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
Silva Sanchez, Jesús-María. La expansion del derecho penal: aspectos del la política criminal em la sociedades postindustriale. 2. ed., rev. y ampl. Madri: Civitas, 2001.
Notas:
(1) TRF-4.ª Região, 8.ª T., ACR 5007302-46.2010.404.7000, rel. p/ acórdão Paulo Afonso Brum Vaz, DE 15.01.2013.
(2) Disponível em: <http://www.bcb.gov.br/?ECOIMPOM>.