Por Marcos Eberhardt e Rodrigo Scalon
Introdução
Sob os signos de ferramenta eficaz de combate à criminalidade (como redutor da impunidade) e confiável meio de prova é que foi aprovada a Lei no 12.654/12, prevendo a coleta de perfil genético como hipótese de identificação criminal (!), quando essencial às investigações policiais (delito em apuração naquele procedimento preliminar) e em relação a condenados por crimes hediondos ou dolosos praticados com violência de natureza grave contra a pessoa (procedimentos criminais futuros).
Mais tarde, através do Decreto no 7.950/2013, foram instituídos o Banco Nacional de Perfis Genéticos, para armazenamento de dados de perfis genéticos coletados para subsidiar ações destinadas à apuração de crimes, e a Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos, permitindo-se o compartilhamento e a comparação de perfis genéticos constantes dos Bancos de Perfis da União, dos Estados e do Distrito Federal.
Em apertada síntese, o perfil de DNA, extraído das amostras coletadas a partir de vestígios biológicos presentes em locais de crime, poderá ser comparado, em procedimento pericial e respeitadas as (poucas) determinações contidas na legislação aplicável, com os perfis de DNA de suspeitos/ investigados ou condenados.
Na linguagem do projeto (PLS no 93/2011), a utilização do DNA em matéria criminal trará a aceleração da resposta à sociedade, com significativo aumento da eficiência do sistema penal, sendo determinante no combate à impunidade. O aparato tecnológico ganha importância, assim, como medida de contenção dos altos índices de crimes graves sem elucidação (cold cases), seguindo orientação da legislação estrangeira – que discutiu amplamente os contornos do uso da tecnologia e harmonização com o sistema processual penal.
Para além das conhecidas posições sobre o tema, a proposta deste curto escrito não é discutir a eficiência do DNA como meio de prova, da qual não duvidamos, mas sim contextualizar esta nova modalidade pericial com o atual modelo de processo penal brasileiro, indicando evidentes descompassos e sugerindo alternativas.
O DNA como prova: verdade absoluta ou mera auxiliariedade processual (?)
A dogmática processual penal é gestada na possibilidade de recriar um acontecimento passado através da recapitulação de informações probatórias na qual a verdade “seria atingida pelo juiz através da livre apreciação da prova” (CARVALHO, 2010, p. 56). Trata-se, principalmente, de um método cartesiano que auxiliará o julgador a suportar os motivos do seu (já formado) convencimento.
Na prova pericial, o seu destinatário se convence a partir de um conteúdo técnico- -científico em relação ao qual são remotas as perspectivas de erros, ofuscado, sobretudo, pelo discurso sedutor e utilitarista da certeza absoluta (a “verdade” virá à tona!). O pressuposto guia nesse sentido é a consagração do desejo mais íntimo do julgador: a identificação do autor do fato através da genética. Tudo se resume a buscar sinais do delito e fazê-lo dizer, mirando a extração de uma verdade (mito!) histórica (CORDERO, 2003, p. 594-595).
Apesar dos limites impostos pelo próprio CPP (toda prova é relativa), a partir do laudo, indicando como positiva a comparação de perfis genéticos do suspeito/ investigado com aquele encontrado na cena do crime, as sentenças implicarão na mesma sistemática padronizada na qual se subscrevem que “o réu está sendo julgado com base nas provas colhidas no processo, quando, na verdade, os juízes continuarão utilizando as clássicas viradas linguísticas do ‘cotejando’ a prova judicializada com os elementos do inquérito” (MARTINS, 2010, p. 31).
[…] apesar da eficiência prometida pelos apoiadores da Lei no 12.654/12, estamos atrasados!
O cientificismo da prova, como característica inquisitiva, sempre teve por bem afastar o magistrado (e também as partes) dos equívocos de valoração, indicando, portanto, para evitar a assunção de riscos, a prevalência da perícia em relação aos demais meios de prova, podendo relativizar inclusive confissões.
Não bastassem tais inquietações, o valor probatório da perícia encontra (ou já deveria ter encontrado!) limites na ausência de contraditório pleno (FERNANDES, 2005, p. 61) já que, comumente realizada e juntada no curso das investigações, poderá ser efetivamente contestada apenas tardiamente, preferencialmente pela atuação de assistentes técnicos e formulação de quesitos no curso da ação penal.
Contraprova e assistente técnico na fase pré-processual: problemas à vista
Diante das considerações anteriores e a especificidade das perícias, bem como de toda complexidade que envolve a cadeia de custódia – não detalhada pela lei até o momento (nem a tipicidade de tal modelo pericial foi especificada pela legislação!) –, a possibilidade de contraditório, pela defesa e pelo Ministério Público, torna-se exigência como oposição ou resistência e, principalmente, influência (GRINOVER, 2007, p.145). O apregoado alto grau de confiabilidade do exame do DNA torna evidente a necessidade de contraprova imediata e efetiva.
Assim, em nosso atual modelo processual penal, mesmo que a perícia pudesse ser repetida – na fase judicial – ou questionado o perito em audiência a partir de contraprova de assistente técnico nomeado, a defesa/assistência técnica já teria perdido a chance de acompanhar a evolução da cadeia de custódia até a comparação dos perfis genéticos.
Imaginando-se apenas para argumentar que todos os clientes da Justiça Criminal possam dispor de assistentes técnicos, a realidade do processo penal brasileiro é outra! É cada vez mais incentivada a qualificação e criação de meios de prova inerentes à investigação sem, contudo, especificá-los, obstando a atuação efetiva das partes em tais circunstâncias.
Nessa perspectiva, o Código de Processo Penal Português, por exemplo, ao indicar os meios de obtenção da prova, disciplina que “Ao exame só assistem quem a ele proceder e a autoridade judiciária competente, podendo o examinando fazer-se acompanhar de pessoa da sua confiança, se não houver perigo na demora, e devendo ser informado de que possui essa faculdade.” (art.172º, 3).
Não é só, em Portugal a Lei n.º 5/2008, apesar das merecidas críticas (BOTELHO, 2013, p.253), ao criar a base de dados de perfis de DNA para fins de identificação civil e criminal, definiu princípios gerais, finalidades e especificou em várias perspectivas a coleta de amostras, tratamento de dados, fiscalização e custódia. Disciplinou ainda, em seu art.38, que “Em caso algum é permitida uma decisão que produza efeitos na esfera jurídica de uma pessoa ou que a afete de modo significativo, tomada exclusivamente com base no tratamento de dados pessoais ou de perfis de ADN”.
De tudo isso, fica fácil concluir que, apesar da eficiência prometida pelos apoiadores da Lei no 12.654/12, estamos atrasados! Nosso sistema processual penal ainda não está preparado para, aliado às tecnologias vinculadas aos novos meios de prova, permitir decisões judiciais amparadas em debates construídos a partir do contraditório pleno das partes.
Cabe referir, no entanto, que o PLS no 156/2009, disciplinando a figura do juiz de garantias num processo penal alicerçado em contraditório, parece fortalecer a paridade de armas, permitindo a participação efetiva dos envolvidos na discussão do caso criminal. É o que demonstram, por exemplo, as disposições do art. 14 daquele projeto, ao disciplinar que compete ao juiz de garantias deferir pedido de admissão de assistente técnico para acompanhar a produção da perícia (Inciso XVI).
Apesar da indicação de alguns pontuais descompassos da Leio 12.654/12, o que se espera é que a comparação de perfis genéticos realmente possa tornar a investigação mais eficiente, mas desde que sejam asseguradas todas as garantias técnicas à defesa e ao Ministério Público, principalmente aquelas inerentes ao contraditório pleno.
Portanto, é preciso, sobretudo, dialética!
Referências:
BOTELHO, Marta Maria Maio Madalena. Utilização das técnicas de ADN no âmbito jurídico: em especial, os problemas jurídico-penais da criação de uma base de dados de ADN para fins de investigação criminial. Coimbra. Almedina. 2013.
CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. Rio de Janeiro. Lumen Juris. 2010.
CORDERO, Franco. Procedurapenale. Milano: Giuffrè. 2003.
FERNANDES, Antônio Scarance. Processo Penal Constitucional. RT. 2005.
GRINOVER, Ada Pellegrini. As Nulidades no Processo Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 145.
MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito. Rio de Janeiro. Lumen Juris. 2010