BOLETIM IBCCRIM – A interpretação do Art. 28-A, § 2º, III, do CPP à luz de outros institutos despenalizadores do Processo Penal brasileiro

Resumo: O presente ensaio, a partir da contextualização da inserção do acordo de não persecução penal no ordenamento jurídico brasileiro, expõe uma dificuldade prática enfrentada pelos operadores do direito para calcular o prazo disposto no art. 28-A, § 2º, III, do Código de Processo Penal. Trata-se do prazo de cinco anos sem a concessão de quaisquer benefícios despenalizadores anteriores. A fim de encontrar uma solução, analisa-se o procedimento adotado pelos demais mecanismos de solução não litigiosa de conflitos e conclui-se pela impossibilidade de analogia in mallan parten, prezando, sempre que preenchidos os requisitos do caput do art. 28-A, do CPP, pelo cabimento do acordo de não persecução penal.

Dra. Laura Fraga Oliveira e

Dra. Gabrielle Casagrande Cenci

 

 

1. Considerações iniciais

Incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro através da Lei 13.964/19, a qual é amplamente conhecida como o pacote anticrime proposto pelo então Ministro da Justiça Sérgio Moro, o acordo de não persecução penal tornou-se uma realidade no cotidiano dos que lidam com o processo penal e, sem dúvidas, haverá de conquistar cada vez mais espaço na prática jurídica. Cuida-se de ferramenta que busca expandir a justiça negocial ao permitir o acordo direto entre o órgão acusatório e a defesa do investigado (LOPES JR., 2020, p.  220).

Sob esta óptica, como aduz Cruz, o acordo de não persecução penal busca redimensionar o sistema processual penal brasileiro em duas frentes: a um, delitos de natureza econômica têm sido sancionados, afastando-se da cultura de impunidade aos agentes de maior patamar socioeconômico; e, a dois, tem-se buscado uma redução da imposição de cárcere a outras figuras delitivas, a partir da despenalização de medidas demasiadamente severas (CRUZ, 2020, p. 365-366).

Entretanto, por se tratar de uma novidade legislativa, o acordo de não persecução penal vem sendo alvo de inúmeras discussões – que, em sua maioria, objetivam a extensão do benefício ao maior número de casos possíveis. Uma delas, que fomenta o presente estudo, diz respeito ao cálculo do prazo de cinco anos sem a concessão de quaisquer benefícios despenalizadores anteriores, prevista no art. 28-A, § 2º, III, do Código de Processo Penal, não possuindo marcos temporais pré-fixados.

Para a análise de uma possível solução para a problemática posta, cabe realizar breve estudo acerca do panorama da incorporação do acordo de não persecução penal ao processo penal brasileiro como instituto jurídico legalmente amparado, para que se possa compreender a efetiva insegurança jurídica oriunda da aplicação do dispositivo legal e, ao final do presente estudo, sugerir-se uma alternativa viável para garantir a resolução consensual do conflito como direito subjetivo do investigado.

 

2. Breve panorama do acordo de não persecução penal no processo penal brasileiro

De maneira polêmica, o acordo de não persecução penal surgiu no ordenamento jurídico brasileiro em forma de resolução administrativa, promulgada pelo Conselho Nacional do Ministério Público no ano de 2017. Destarte, no bojo da investigação que ficou conhecida como Lava-Jato, a cúpula máxima do órgão acusatório regulamentou, no art. 18 da Resolução 181/17, a possibilidade de celebração de acordo com o investigado. Ainda que questionável a via então eleita pelo parquet para a previsão do instituto, certamente tratou-se de movimento que foi ao encontro da necessidade de celeridade e de economia processual (BARROS; ROMANIUC, 2019, p. 66-67), buscando-se evitar o chamado overcharging (HUSAK, 2013, p. 41-51).

Outrossim, o instituto disciplinado no art. 28-A do Código de Processo Penal é um mecanismo típico da justiça criminal negocial, por meio do qual o Ministério Público se abstém de propor ação penal em desfavor do investigado, o qual renuncia ao direito ao julgamento e se compromete ao cumprimento de determinadas exigências tecidas pelo órgão acusatório, de natureza mais branda do que seriam aquelas inerentes à pena eventualmente aplicada (CUNHA, 2020, p. 127), e que culmina na extinção da punibilidade do agente, formando coisa julgada material no que diz respeito à apuração penal dos fatos discutidos.

Sob esta perspectiva, a incorporação do acordo de não persecução penal ao ordenamento jurídico brasileiro representa uma superação parcial do princípio da obrigatoriedade da ação penal, o qual determina que o Ministério Público deve oferecer denúncia quando a investigação criminal demonstra a existência de indícios suficientes de materialidade e autoria, não havendo liberdade de escolha do órgão acusatório (OLIVEIRA, 2009, p. 114-115). Portanto, diz respeito à obrigatoriedade de “persecução de todos os fatos que as autoridades públicas tomarem conhecimento e que se enquadrem como fatos puníveis segundo o ordenamento jurídico vigente” (VASCONCELLOS, 2015, p. 46). Todavia, o conceito-chave é a pretensão punitiva, mas não necessariamente a persecução penal (PRADO, 2006, p. 154).

Transcorridos mais de quinze meses desde a entrada em vigor da lei anticrime, e apesar do cenário pandêmico decorrente do COVID-19, que engloba praticamente todo esse período, o acordo de não persecução penal ganhou espaço na prática jurídica, sendo alvo de decisões por todos os tribunais brasileiros e, até mesmo, resoluções dos próprios Ministérios Públicos, incentivando a sua celebração e fixando diretrizes para tanto.

 

3. A problemática do prazo de cinco anos determinado pelo art. 28-A, § 2º, III, do Código de Processo Penal

Para a melhor compreensão da problemática, cabe adiantar que o acordo de não persecução penal é direito subjetivo. E, destarte, o direito objetivo é classificado como o “conjunto de princípios jurídicos aplicados pelo Estado à ordem legal da vida” (JHERING, 2006, p. 04), enquanto o direito subjetivo é “a transfusão da regra abstrata no direito concreto da pessoa interessada” (JHERING, 2006, p. 04). Na mesma linha, direito subjetivo é “o meio de satisfazer interesses humanos” (MONTEIRO, 1999, p. 04). A vinculação entre a situação jurídica subjetiva e o direito subjetivo “implica a possibilidade de uma pretensão, unida à exigibilidade de uma prestação, unida à exigibilidade de uma prestação ou de um ato de outrem” (REALE, 2003, p. 259), o que torna o direito subjetivo “exigível pela via judicial” (SARLET, 2017).

Outrossim, o direito subjetivo, para restar configurado, depende de uma situação jurídica subjetiva, na medida em que “apresenta-se como um conjunto unitário (e unificador) de situações jurídicas elementares: isso indica um conjunto de faculdades, pretensões, poderes e imunidades que se encontram em um estado de habitual e constante ligação” (LUMIA, 2003, p. 107). Uma situação jurídica subjetiva é caracterizada quando um indivíduo corresponde “ao tipo de atividade ou pretensão configurado numa ou mais regras de direito” (REALE, 2003, p. 259).

A partir disso, o que se apercebe é que o acordo de não persecução penal é direito subjetivo do investigado que, cumprindo todas os requisitos expostos em lei, deve ter a possibilidade de celebrar solução consensual com o órgão acusatório. Duas conclusões que se extraem desta premissa são: a um, não se pode admitir a criação ou interpretação desfavorável de óbices não previstos pelo art. 28-A do Código de Processo Penal, justamente pois, a dois, o benefício deve alcançar o maior número de casos possível como foi claramente o intento legislativo.

Nesta esteira, a possibilidade de celebração de acordo de não persecução penal pressupõe a verificação de existência de transação penal, suspensão condicional do processo ou até mesmo outro acordo de não persecução penal nos últimos cinco anos anteriores ao cometimento da infração. Esta condição vem insculpida no art. 28-A, § 2º, III, do Código de Processo Penal, e serve como óbice insuperável imposto pelo legislador à solução consensual do litígio pela via do acordo.

No entanto, o que deveria ser uma constatação descomplicada a partir da consulta de expedientes pretéritos fomenta dúvida quanto ao exato marco temporal de início da contagem do prazo para o novo benefício, na medida em que a legislação não faz referência a quaisquer balizas objetivas aplicáveis. Logo, as partes se deparam com dois marcos extremos, quais sejam: a um, o dia em que foi homologado o acordo/benefício anterior e, a dois, a data da decisão que extingue a punibilidade do fato.

Contudo, a definição da data a ser utilizada pode implicar no cabimento ou não do acordo de não persecução penal, na medida em que pode haver uma diferença de dois até quatro anos entre os referidos marcos. Nos casos de suspensão condicional do processo, nos quais é possível que o processo permaneça suspenso por até quatro anos, quando somado ao prazo de cinco anos do art. 28-A, § 2º, III, do Código de Processo Penal – considerando a data da extinção da punibilidade – atinge o desproporcional prazo de nove anos para celebração de novo benefício.

Há que se considerar, pontualmente, que a primeira previsão do acordo de não persecução penal no processo brasileiro não previa o marco de cinco anos sem celebração de outro instituto despenalizador. Nesta toante, o art. 18 da já mencionada Resolução 181/17 do Conselho Nacional do Ministério Público não trazia tal limitação, mas meramente vetava a propositura do acordo nas hipóteses em que era cabível transação penal e/ou suspensão condicional do processo. Destarte, a inserção deste prazo foi inovação que surgiu quando da elaboração da Lei 13.964/19 – a qual, sabidamente, tramitou de forma célere junto ao Senado Nacional, não possibilitando a adequada discussão jurídico-acadêmica pela comunidade antes de sua promulgação.

 

4. A aplicação análoga de outros institutos despenalizadores do processo penal brasileiro como baliza delimitadora da contagem processual

Historicamente, a solução não litigiosa dos conflitos ganha espaço na esfera cível, com a previsão do compromisso de ajustamento de conduta (TAC), incluso na Lei 7.347/85 por força da Lei 8.078/90. Ainda na década de 1990, diante do movimento da justiça negocial, a Lei 9.099/95 trouxe a possibilidade de resolução de ações penais oriundas de crimes de menor potencial ofensivo a partir da autocomposição civil, da transação penal e da suspensão condicional do processo.

Também cabe menção ao acordo de leniência, incorporado à legislação brasileira a partir da promulgação da Lei 12.846/13. Não em sentido diferente, a Lei 12.850/13, que veio para o fim precípuo de combater o crime organizado, confirmou a possibilidade do perdão judicial como reflexo da colaboração premiada – que já era prevista no ordenamento jurídico brasileiro por força da Lei 9.807/99. Portanto, os espaços de consenso não são estranhos ao processo brasileiro, pelo que, diante da existência de inúmeras dúvidas que emergem da legislação pertinente ao acordo de não persecução penal, mostra-se cabível recorrer a esses institutos na ávida busca por respostas.

No que diz respeito à transação penal, o prazo de cinco anos referido no art. 76, I, da Lei 9.099/95 deve ser contado a partir da data de publicação da decisão judicial que declara extinta a pena restritiva de direitos ou multa anteriormente aplicada. Assim sendo, a sentença que homologa a transação penal, fixando os termos propostos pelo Ministério Público, bem como seu trânsito em julgado, se torna irrelevante para fins de contagem do lapso temporal exigido para a concessão de nova benesse despenalizadora.

À luz do entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal na Súmula Vinculante 35, há que se considerar que a homologação da transação penal não tem eficácia de coisa julgada material, mormente pela possibilidade de revogação do benefício na hipótese de descumprimento das condições fixadas.

Logo, quando o magistrado comunica, em audiência de homologação da transação penal, que novo benefício não poderá ser ofertado pelo prazo de 5 (cinco) anos, trata-se de uma ficção, uma vez que tal prazo é deveras superior, passando a fluir apenas com a declaração de extinção da punibilidade, tendo em vista o disposto na Súmula Vinculante 35.

Contudo, tem-se que esse entendimento é mais prejudicial ao investigado, de forma que, não havendo determinação específica para os casos de ANPP, na prática, preenchidos os demais requisitos para celebração do acordo, e verificado o transcurso de cinco anos, ainda que contados da homologação da transação, deve ser possibilitada a negociação do acordo junto ao Ministério Público.

Ademais, em se tratando de um direito subjetivo do investigado, preenchidos os requisitos objetivos do caput do art. 28-A, deve ser oferecido o acordo de não persecução penal, de sorte que a ausência de marcos definidos em lei para o cálculo do prazo do art.  28-A, § 2º, III, do Código de Processo Penal, não pode, em analogia in mallan parten, obstar a celebração do acordo.

 

5. Considerações finais

Tem-se, portanto, que a contemporaneidade do acordo de não persecução penal incorre na ausência de respostas concretas aos questionamentos vinculados à sua aplicação prática. Entretanto, o estudo dos demais mecanismos de solução não litigiosa de conflitos possibilita prever o entendimento a ser adotado para o novel instituto.

Nada obstante, no que diz respeito ao objeto desse artigo, qual seja, o cálculo do prazo de cinco anos sem a concessão de quaisquer benefícios despenalizadores anteriores previsto no art. 28-A, § 2º, III, do Código de Processo Penal, a analogia com procedimentos adotados por outros institutos consiste em prejuízo aos investigados, que teriam o cálculo do prazo autorizador do acordo de não persecução penal desproporcionalmente alargado.

Ante ao exposto, conclui-se que a ausência de previsão legal, a qual gera incerteza quanto ao marco temporal para cálculo do prazo, deve permitir o início das tratativas de acordo de não persecução penal junto ao Ministério Público sempre que observado o transcurso do prazo de 5 (cinco) anos, adotando-se o marco mais benéfico ao investigado, qual seja, o início do cumprimento das condições do benefício anteriormente concedido.

 

Referências

BARROS, Francisco Dirceu; ROMANIVC, Jefson. Contitucionalidade do acordo de não persecução penal. In: CUNHA, Rogério Sanches et al (Coords.). Acordo de Não Persecução Penal. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2019.

CUNHA, Rogério Sanches. Pacote Anticrime – Lei 13.964/2019: Comentários às Alterações no CPP, CPP e LEP. Salvador: Juspodvm, 2020.

CRUZ, Rogério Schietti. Prisão Cautelar, Dramas, Princípios e Alternativas. 5. ed. Salvador: Juspovium, 2020.

HUSAK, Douglas. Sobrecriminalización: los límites del derecho penal. Madrid: Marcial Pons, 2013. p. 41-51.

JHERING, Rudolf von. A Luta pelo Direito. Tradução de João de Vasconcelos. São Paulo: Forense, 2006.

LOPES Jr., Aury. Direito Processual Penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2020.

LUMIA, Giuseppe. Elementos de Teoria e Ideologia do Direito. Trad. Denise Augustinetti. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 

MAZZILLI, Hugo Nigro. Introdução ao Ministério Público.  2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998.

MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: Parte Geral. 36. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. v. 1.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 11. ed. Rio de Janeiro: 2009.

PRADO, Geraldo. Transação Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas aproximações entre direitos sociais e mínimo existencial. Conjur, 1º set. 2017. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-set-01/direitos-fundamentais-algumas-aproximacoes-entre-direitos-sociais-minimo-existencial. Acesso em: 30 abr. 2020.

REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Barganha e Justiça Negocial: análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no processo penal brasileiro. São Paulo: IBCCRIM, 2015.

 

BOLETIM IBCCRIM – ANO 30 –  N.º 351

FEVEREIRO DE 2022 – ISSN 1676-3661

Por: Marcos Eberhardt
de de

Relacionados