CONJUR – Anotações sobre a proposta de reforma da Lei de Improbidade Administrativa

Encontra-se em tramitação no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 10.887/2015, que visa a alterar a Lei 8.429/92, a qual dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na Administração Pública direta, indireta ou fundacional e dá outras providências.

Em um breve resgate histórico, recorda-se que a Lei de Improbidade Administrativa (LIA) nasceu do Projeto de Lei 1.446/91, encaminhado ao Congresso Nacional pelo então presidente da República Fernando Collor de Mello, e teve por finalidade regulamentar o disposto no artigo 37, §4º, da Constituição Federal e, ainda, conforme constou na exposição dos motivos, pretendia se inserir como “um marco no processo de modernização do país”, visto que convivíamos, nas palavras do então ministro da Justiça, Jarbas Passarinho, em um cenário de “prática desenfreada e impune de atos de corrupção, no trato com os dinheiros públicos” [1].

Passado o governo do presidente Fernando Collor de Mello, encerrado, ironicamente, após sua renúncia, ao final de 1992, permaneceu a Lei de Improbidade Administrativa, em vigência há 28 anos.

Embora o texto vigente possa ser considerando como um verdadeiro marco de combate à corrupção na história da República, surgiu a necessidade de uma revisão para “sua adequação às mudanças ocorridas na sociedade e também para adaptar-se às construções hermenêuticas da própria jurisprudência, consolidadas em decisões dos Tribunais” [2], esse é o objetivo que se propõe o Projeto de Lei nº 10.887/2018.

Sem pretender esgotar o tema, as presentes anotações visam a abordar três inovações importantes da proposta legislativa, frente à adequação às garantias constitucionais e de acordo com a jurisprudência pacificada pelos tribunais superiores a respeito do tema: a) sobre a proposta de alteração em relação à responsabilidade dos sucessores pelo pagamento da multa civil; b) sobre a supressão da responsabilidade fundada na culpa; e, por fim, c) sobre a unificação do prazo de prescrição e a inserção de um prazo para imposição do ressarcimento.

No primeiro ponto, acerca da responsabilidade dos sucessores pela multa civil, a atual redação do artigo 8º da Lei 8.429/92, ao tratar do tema, em caso de enriquecimento ilícito, limita o ressarcimento da lesão ao patrimônio público ao limite do valor da herança. A par disso, a jurisprudência, até então, faz a diferenciação entre o ressarcimento, consequência do dever de reparação do dano, e a multa, enquanto sanção [3]. Não há dúvidas de que, nesse último caso, a responsabilidade não atinge a sucessão. Tanto é verdade que, nos casos em que a ação civil pública por ato de improbidade administrativa é fundada apenas no artigo 11 (violação à princípios), o falecimento do requerido no curso do processo enseja a extinção do feito.

À mercê desse entendimento pacifico, ou até mesmo para combatê-lo, a proposta legislativa altera substancialmente a redação do artigo 8º e acresce ainda o artigo 8º-A, dispondo a respeito da responsabilidade sucessória da pessoa jurídica. Vejamos:

“Artigo 8º — Os efeitos do ressarcimento e da multa civil por ato de improbidade serão transmitidos aos herdeiros, até o limite do valor da herança”.

“Artigo 8°-A — No caso de pessoa jurídica, a responsabilidade sucessória de que trata o artigo anterior se estende também ao valor da multa civil”.

No nosso entendimento, não andou bem a proposta de reforma, não apenas por alterar uma questão que, passados 28 anos, não é objeto de controvérsia jurisprudencial, mas também pelo fato de que incide em clara violação ao artigo 5º, inciso XLV, da Constituição Federal (princípio da pessoalidade).

Em um segundo ponto, a proposta visa à supressão da responsabilização por atos culposos, indo ao encontro dos anseios da construção doutrinária, conforme explicitado na justificativa do projeto de lei: “não é dogmaticamente razoável compreender como ato de improbidade o equívoco, o erro ou a omissão decorrente de uma negligência, uma imprudência ou uma imperícia”.

Ressalta-se que, atualmente, a Lei de Improbidade Administrativa conduziu o entendimento doutrinário e jurisprudencial no sentido de que os atos previstos nos artigos 9º e 11, somente serão puníveis quando comprovado o dolo. Por sua vez, as condutas tipificadas no artigo 10 admitem a punição no caso de comprovada a culpa grave.

Na prática, o que se verifica é que, diante de enorme dificuldade de encontrar um conceito adequado de culpa, as decisões judiciais que condenam a conduta culposa (nas situações previstas no artigo 10), a bem da verdade, implicam em verdadeira responsabilização objetiva. É o que ocorre, por exemplo, na interpretação que o Superior Tribunal de Justiça concede às situações previstas no inciso VIII (frustrar a licitude de processo licitatório ou de processo seletivo para celebração de parcerias com entidades sem fins lucrativos, ou dispensá-los indevidamente) [4].

Parece-nos razoável o entendimento do legislador reformador, visto que a gravidade das sanções impostas pela Lei de Improbidade Administrativa (perda dos direitos políticos e até consequente inelegibilidade), não são compatíveis com a noção de culpa, até mesmo pelo fato de que eventual lesão ou prejuízo ao erário poderia ser resolvido na esfera cível.

Por último, no que entendemos ser a principal modificação dentro das que são objeto desta análise, destacamos a unificação do prazo de prescrição e a inserção de um prazo prescricional em relação ao ressarcimento dos danos decorrentes do ato de improbidade administrativa. A atual redação do artigo 23, que trata dos prazos de prescrição do direito de propositura de ação, traz em seus incisos três prazos distintos:

“Artigo 23 — As ações destinadas a levar a efeitos as sanções previstas nesta lei podem ser propostas:

I — Até cinco anos após o término do exercício de mandato, de cargo em comissão ou de função de confiança;

II — Dentro do prazo prescricional previsto em lei específica para faltas disciplinares puníveis com demissão a bem do serviço público, nos casos de exercício de cargo efetivo ou emprego;

III — Até cinco anos da data da apresentação à administração pública da prestação de contas final pelas entidades referidas no parágrafo único do artigo 1º desta lei”.

A existência de três prazos prescricionais aplicáveis por inúmeras vezes tornou-se motivo de controvérsia nos tribunais, em especial circunstância quando se trata de hipóteses de servidores investidos em função de confiança. A partir disso, a proposta legislativa prevê a alteração do texto previsto no artigo 23, passando a consignar um único prazo: dez anos a contar da data do fato, o que, em determinada medidas circunstâncias, apresenta um cenário de segurança jurídica, ainda que alcance um período demasiadamente extenso.

Controversa é a previsão da inserção do §2º, que prevê a possibilidade de prescrição de ressarcimento do dano e a perda de valores de origem privada. O referido dispositivo prevê um prazo de 20 anos de prescrição, contudo, embora louvável a pretensão, é pouco provável que tal dispositivo encontre aprovação na Comissão de Constituição de Justiça, dado o fato de que conflita com a previsão contida no 37, §5º, da Constituição Federal, bem como com o recente entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal através do Tema 897 [5], em que restou consignada a imprescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário fundadas em ato doloso de improbidade administrativa.

Destarte, em que pese seja louvável a reforma que, em muitos aspectos, corresponde ao entendimento doutrinário e jurisprudencial, compreendemos que há um longo caminho a percorrer, na medida em que aspectos importantes relacionados às garantias constitucionais do demandado não foram contemplados, como, por exemplo, o direito de ser ouvido. Assim sendo, trata-se de campo que ainda necessita de estudo antes de maiores alterações, sob pena de modificações que, a longo prazo, venham a prejudicar o polo passivo da ação civil pública por improbidade administrativa.

Diante dessas considerações, nos últimos anos, verifica-se um cenário de incentivo orçamentário e institucional para que o Ministério Público criasse instrumentos próprios para o fim de estabelecer inquéritos civis e ações civis públicas. Assim, conforme referido inicialmente, estas breves anotações não pretendem aprofundar as temáticas e, sim, inaugurar campos de debate acerca da tentativa de reforma da Lei de Improbidade Administrativa, que em breve alcançará os seus 30 anos de vigência.

Por Marcos Pippi e Juliano Viera da Costa

 

[1] Exposição de Motivos. Lei de Improbidade Administrativa. Diário do Congresso Nacional – Seção 1 – 17/8/1991, Página 14124.

[2] Justificativa do Projeto de Lei nº 10.887/2015. Câmara dos Deputados. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/>. Acesso em 22/07/2020.

[3] STJ. REsp 622.234/SP. Rel. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 01/10/2009, DJe 15/10/2009.

[4] STJ. AgRg nos EDcl no AREsp 419.769/SC, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 18/10/2016, DJe 25/10/2016.

[5] Tema 897: “São imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso de improbidade administrativa”.

Por: Marcos Pippi
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