REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA FMP – Ampla defesa e contraditório na fase preliminar: CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS AO ARTIGO 14-A DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

Resumo
 
Os direitos fundamentais à ampla defesa e ao contraditório, em todos os procedimentos, constituem pilares fundamentais do devido processo legal em qualquer sistema processual penal democrático. Na perspectiva do direito de ciência e informação da persecução penal, introduziu-se ao Código de Processo Penal, através da Lei nº 13.964/2019 (Lei Anticrime), o artigo 14-A que assegura a determinados servidores da área de segurança pública o direito de constituir defensor para acompanhamento da investigação. Destarte, o presente estudo pretende analisar os progressos no ordenamento jurídico brasileiro rumo à efetivação do direito de defesa na persecução penal prévia, propondo uma reflexão sobre o novo artigo 14-A introduzido ao Código de Processo Penal pela Lei nº 13.964/2019 à luz do princípio da isonomia.
 

1      Introdução

A fase preliminar do processo penal, por constituir importante etapa do sistema criminal e irradiar efeitos em todo o processo e nos diversos sujeitos processuais, não deve limitar sua compreensão a partir da reducionista ótica inquisitorial em que se funda, ao argumento de ser apenas procedimento administrativo. Em que pese prescindível ao processo penal, a investigação preliminar possui papel fundamental não só na preparação de subsídios ao exercício da pretensão acusatória, como também no funcionamento eficaz da Justiça, impedindo os efeitos nocivos que uma acusação infundada causa ao sujeito passivo.

Frente à essa concepção, as bases e funções da investigação criminal brasileira devem ser refletidas e amadurecidas com vista à concretização dos direitos e garantias fundamentais do investigado, na perspectiva de consolidação de um processo penal democrático e constitucionalmente vinculado. O sistema processual penal democraticamente constituído (e evoluído) deve guiar-se através dos valores constitucionais insculpidos na Carta Magna de 1988, haja vista sua estrutura como termômetro dos elementos corporativos ou autoritários de sua Constituição (GOLDSCHMIDT, 1935, p.  67).  Como  necessidade democrática, o direito de defesa e ao contraditório, constitucionalmente previstos no artigo 5º, LV, da Constituição Federal, devem ser assegurados em todos os procedimentos, com a efetiva e igualitária participação das partes (persecução e defesa).

Contudo, as problemáticas passam a surgir quando à defesa técnica se limite um papel mínimo – e vezes inexistente – de atuação na fase preliminar do processo penal. Isso se deve ao fato de que, em sistemas de instrução a cargo da polícia ou do Ministério Público, como o vigente em nosso país, toda atividade se destina a subsidiar o acusador e titular da Ação Penal, tendo como consequência um procedimento unilateral de interesse unicamente da acusação (LOPES JR.; GLOECKNER, 2013, p. 99).

Por conta disso, e sob a ótica dos valores constitucionais democráticos insculpidos na Constituição Federal de 1988, passa-se a atentar para uma participação mais ativa e substancial do defensor durante a investigação preliminar, na tentativa de mitigar e abandonar a natureza autoritária do instrumento influenciado pelas concepções fascistas do “Código de Rocco”. Nesse contexto, a necessária evolução do arcabouço normativo, com recentes alterações legislativas sobre o papel da defesa técnica na fase da persecutio criminis preliminar, vai ao encontro da concretização de um modelo garantista de investigação, norteado pelos princípios e garantias individuais da pessoa humana. Não se olvidam, ainda, os riscos da dependência cognitiva e contaminação prematura geradas pela integração de peças produzidas durante a investigação sem o respeito às garantias constitucionais do processo penal, que irradiam efeitos sobre todo o processamento judicializado.

Diante disso, inicialmente imperioso contextualizar a investigação preliminar no processo penal brasileiro e analisar alguns progressos legislativos relacionados ao papel da defesa nessa fase, que positivam e ampliam as formas de atuação do defensor (advogado e defensor público), sedimentando o reconhecimento do direito de defesa na persecução penal através de uma atuação ativa e contributiva à formação da opinio delicti. A partir disso, realizar-se-ão considerações sobre o Inquérito Policial, principal instrumento de investigação criminal vigente no Brasil, e a necessidade de adoção de uma postura ativa do defensor na fase inicial da persecutio criminis, para, então, ao final, adentrarmos no estudo de uma das inovações introduzidas pela Lei Anticrime ao regramento dessa fase preliminar, o artigo 14-A do Código de Processo Penal, como avanço na concretização de garantias fundamentais do investigado no âmbito do Estado Democrático de Direito.

 

2         Evolução histórica da investigação preliminar no Brasil

No Brasil, desde a época colonial e o período que antecedeu as ordenações, há uma série de formas e mecanismos de investigação inicial dos fatos delituosos. Antes da independência do Brasil, a legislação brasileira era idêntica à de Portugal, compreendendo os institutos da devassa, querela e denúncia como forma de investigação vigentes (ALMEIDA, 1973, p. 195). Em 1825, uma portaria de 04 de novembro instituiu o cargo de Comissários de Polícia vinculado ao Intendente Geral de Polícia.

Posteriormente, em 1841, com a Lei nº 261, criou-se a figura do chefe de polícia para o município da Corte e para cada província do Império, além dos cargos de Delegado de Polícia e Subdelegados, nomeados “dentre quaisquer juízes e cidadãos” pelo Imperador ou pelos Presidentes de cada província (PIERANGELLI, 1983, p. 117).

A polícia judiciária da época era quase sempre exercida por magistrados togados, a quem competia não só a apuração das infrações penais, como também o processo e o julgamento dos “crimes de polícia”, concentrando funções judiciais e policiais (ZACCARIOTTO, 2005, p. 60). Foi apenas em 1871, a partir da Lei nº 2.033, de 20 de setembro (regulamentada pelo Decreto nº 4.824) que se procedeu oficialmente à separação das funções de polícia e judiciais, consagrando-se no ordenamento jurídico brasileiro, disposições sobre o Inquérito Policial. Desde meados do século XIX, portanto, esse instrumento possui papel protagonista na apuração de fatos delituosos no país.

Atualmente, o Código de Processo Penal de 1941 rotula a investigação preliminar de Inquérito Policial (inobstante não ser o único modelo de investigação no Brasil), cujo regramento está previsto entre os artigos 4º e 23º do Decreto-Lei nº 3.689, possuindo como objeto o fato noticiado, todas suas circunstanciais – motivos, objetivos, modo de execução, entre outros – e os sujeitos relacionados (GIACOMOLLI, 2011, p. 53). A finalidade precípua do inquérito policial, nas palavras de LOPES JR. e GLOECKNER (2013, p. 224), consiste no “fornecimento de elementos para decidir entre o processo ou o não processo, assim como servir de fundamento para as medidas endoprocedimentais que se façam necessárias no seu curso”.

No entanto, esse instrumento, de inspiração autoritária e com ranço medievalesco da inquisitoriedade (TOVO, 1999, p. 206), encontra-se em crise de existência e natureza jurídica, o que demanda uma leitura crítica constitucional-garantista para adaptá-lo à realidade democrática do sistema processual penal eleito pela Constituição Federal de 1988 (LOPES JR.; GLOECKNER, 2013, p. 223). Nessa perspectiva, figura fundamental não só a imposição de freios e limites aos órgãos oficiais de investigação (GIACOMOLLI, 2011, p. 57), mas também o abandono do sujeito passivo – investigado – como mero “objeto” da investigação, para a consequente valorização do indivíduo a partir do respeito às garantias e princípios constitucionais (LOPES JR.; GLOECKNER, 2013, p. 223).

Frente a essa realidade, o defensor possui papel essencial e indisponível na tutela da dignidade da pessoa humana e no exercício do direito de defesa (GIACOMOLLI, 2016, p. 152). Para LOPES JR. e GLOECKNER (2013, p. 473), a defesa técnica, “mais do que uma garantia do sujeito passivo, é condição de paridade de armas, imprescindível para a concreta atuação do contraditório”.

Apesar de na fase investigatória não haver muito espaço para a atuação da defesa técnica – em razão da própria limitação da defesa nesse procedimento inquisitório –, cingindo-se, no diploma processual penal de 1941, apenas à possibilidade de solicitação de diligências nos estritos limites do artigo 14 do CPP, foi a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 que se fortaleceram as garantias ao exercício efetivo da atividade de defesa. Dentro desse marco constitucional, foi promulgada a Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994, conhecida como Estatuto da Advocacia, que além de disciplinar a atividade profissional do advogado, prescreve uma série de direitos e garantias do advogado, especialmente no artigo 7º.

Outro importante avanço na perspectiva de efetivação do direito de defesa na investigação preliminar brasileira resultou do reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal, nos autos do HC 82.354, de relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence, do direito de o defensor ter acesso aos autos do inquérito policial. Em decorrência dessa decisão, o STF editou a Súmula Vinculante nº 14, a garantir o acesso da defesa técnica aos autos do inquérito policial.

Outrossim, no bojo da discussão inaugurada introduzida pela Constituição Federal sobre a possibilidade de maior atuação da defesa nos procedimentos administrativos e judiciais, foi instituída a obrigatoriedade da defesa técnica em benefício do colaborador em todos os atos da colaboração premiada pela Lei nº 12.850/2013.  Segundo o parágrafo 15 do artigo 4º da “Lei das Organizações Criminosas”, é indispensável que o réu colaborador seja assistido por defensor em todos os atos de negociação, confirmação e execução da colaboração, o que constitui uma concretização da garantia da ampla defesa nesse procedimento.

Ainda, a obrigatoriedade da defesa técnica e do acompanhamento do sujeito investigado por advogado na fase da investigação preliminar foi normatizada pela Lei nº 13.245/2016, que alterou os incisos XIV e XXI do artigo 7º do Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/1994) e acrescentou os parágrafos 10, 11 e 12 ao aludido dispositivo. Segundo o inciso XXI do artigo 7º da legislação federal, é direito do advogado a plena assistência de seus clientes investigados no decorrer da investigação preliminar, “sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente”; podendo, inclusive, atuar ativamente durante a apuração das infrações mediante a apresentação de razões e quesitos, consoante reza a alínea “a” do dispositivo legal.

Evidentemente, o avanço na regulamentação da presença do defensor na investigação preliminar não constitui mero direito do advogado, do ponto de vista do respeito de suas prerrogativas, mas, sobretudo, representa uma garantia de proteção do próprio sujeito investigado. Sendo-lhe garantida a presença de defensor nessa fase inicial da persecução penal, sobretudo no interrogatório policial, ficam salvaguardados os direitos e garantias fundamentais do investigado, sobretudo o direito ao silêncio e o de não se autoincriminar, assegurados na própria Constituição e no artigo 8.2.g. da Convenção Americana de Direitos Humanos.

Na mesma toada, com o fito de expandir as formas de atuação do defensor na investigação preliminar, como corolário da adoção do contraditório e da ampla defesa em todo o procedimento criminal, o Projeto de Lei nº 8.045/2010 (antigo PLS 156/2009 do Senado Federal), atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados, que pretende editar um novo Código de Processo Penal brasileiro, consigna expressamente a possibilidade do exercício ativo do defensor durante a investigação. O Projeto inova, incialmente, ao prever um título específico ao gênero “Investigação Criminal” (Título II), em vez de rotular apenas um de seus instrumentos, o inquérito policial, como procedido pelo Código de Processo

Penal de 1940, conforme já abordado. Prescreve, o artigo 13º do PLS 8.045/2010 originário, a faculdade do investigado, através de seu advogado, de Defensor Público ou de outro mandatário, tomar a iniciativa de identificar fontes de prova em favor da defesa, podendo inclusive entrevistar pessoas.

Importante salientar que a proposição ultrapassa a mera requisição de diligência prevista no vigente CPP/41, para permitir, expressamente, a possibilidade da defesa indicar fontes de prova favoráveis ao investigado e buscar elementos de provas de descargo em resistência à pretensão estatal investigatória e coercitiva.

Em que pese a tramitação do PLS 156/2009 continue patinando no Congresso Nacional e a previsão de atuação ativa do defensor na fase investigatória, todavia não tenha sido incorporada efetivamente à legislação brasileira, a mais recente alteração legislativa, Lei nº 13.964/2019, trouxe uma importante inovação aos dispositivos atinentes ao Inquérito Policial positivados no diploma processual penal.

Sancionada em 24 de dezembro de 2019, a denominada Lei Anticrime entrou em vigor em 23 de janeiro de 2020, com uma série de inovações e modificações em institutos do direito material e processual penal brasileiro. No que concerne ao objeto do presente estudo, a Lei nº 13.964/19 incorporou ao Código de Processo Penal, no artigo 14-A, o direito do investigado constituir defensor para acompanhamento da investigação criminal.

Ainda que restrita a sujeitos específicos e apenas na apuração de determinados fatos delitivos, como abordaremos mais profundamente no decorrer da pesquisa, o artigo 14-A do Código de Processo Penal se alinha a uma crescente tendência de ampliação de direitos e garantias fundamentais ao suspeito no âmbito do procedimento investigativo. O direito do suspeito à ciência sobre instauração de investigação em seu desfavor representa um passo significativo rumo à ampliação de um sistema processual penal garantista e democrático, cumprindo ao postulado constitucional e convencional do direito à ampla defesa e ao contraditório, ainda que na perspectiva do direito à informação, a todos os investigados e acusados.

 

3         A atuação ativa da defesa técnica durante a investigação preliminar no processo penal

Como primeiro passo na busca da regulamentação da investigação defensiva, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil por meio do Provimento nº 188/18 sacramentou a participação da defesa técnica na fase preliminar, assegurando-lhe prerrogativas quanto à prática de atos de natureza investigatória a fim de obter prova em favor da defesa. Trata-se de um novo paradigma, do qual a postura defensiva durante a investigação criminal deverá transcender a passividade que parece lhe ser inerente, e atuar ativamente em prol do investigado (GIACOMOLLI, 2011, p. 89), desde antes do início de eventual ação penal.

MORAIS DA ROSA e LOPES JR. (2019, p. 1) conferem importância à atuação da defesa técnica frente ao inquérito policial diante da possibilidade de decretação de medidas cautelares (de natureza real e também de natureza pessoal, variando da constrição patrimonial à prisão preventiva) e, para além disso, do impacto das provas colhidas durante a investigação criminal quando da decisão de mérito de eventual ação penal.

Salienta-se que  os  autos  que  compõe  a  investigação  preliminar  em  território  brasileiro  ainda  ocupam valoroso espaço na instrução processual e, consequentemente, na sentença judicial. As perícias realizadas no local do crime, a título de exemplo, recebem status de prova definitiva, afastando-se o contraditório e a participação de assistente técnico quando, na instrução processual, já tenha sido desfeito. Sob o viés da Defensoria Pública, CAPONI (2019, p. 96) é pontual quando refere que a atividade defensiva torna-se insuficiente quando atua somente na fase processual, “especialmente quando o Acusado responde ao processo preso cautelarmente – e não pode, por sua própria conta, empreender diligências, como a localização de testemunhas, busca de documentos ou de outros elementos relevantes, que poderiam auxiliar em sua defesa”.

Em certa medida, o Código de Processo Penal brasileiro define os atores que terão o encargo probatório no âmbito do inquérito policial – e, via de regra, a investigação em fase preliminar como um todo -, submete o investigado ao que denominou de contraditório diferido (LOPES JR., 2019,  p. 175), trata-se, em síntese, da relativização do direito processual insculpido no art. 5º, inc. LIV, da Constituição  Federal  não  pode  servir  como  justificativa  ou  pretexto  para  que  o  advogado  deixe  de  atuar durante fundamental etapa do procedimento penal. Como bem leciona GIACOMOLLI (2015, p. 163), é impensável a supressão do direito de “poder participar, requerer, ser ouvido e informado”.

Dessa forma, muito embora o contraditório diferido não torne obrigatório informar o investigado dos atos praticados, não há como impossibilitar a atuação defensiva, uma vez tomado conhecimento do que já foi praticado na investigação.

Nesse sentido, ainda que pareça primitivo, o primeiro movimento defensivo estará na obtenção de vista dos autos nos quais se encontra documentada a investigação criminal. Muito embora seja prevista a possibilidade de restrição à publicidade do procedimento investigatório em situações excepcionais (LOPES JR., 2019, p. 177), “[é] direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”, na forma da Súmula Vinculante nº 14 do Supremo Tribunal Federal.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul frequentemente reassenta tal posição, a partir da concessão de segurança para garantir o acesso aos autos de inquérito policial. Mais do que isso, também não se pode olvidar que a superveniência da Lei nº 13.869/19 (denominada Lei do Abuso de Autoridade) criminalizou a conduta de negar acesso aos autos de qualquer tipo de investigação, obstruindo a atuação defensiva na fase do procedimento investigatório, tornando manifesta a necessidade de respeito do direito ao contraditório do investigado.

A previsão da possibilidade de requisitar diligências à autoridade policial vem insculpida no art. 14 do Código de Processo Penal, que também faculta a essa o indeferimento do pedido defensivo, a seu critério. Segundo GIACOMOLLI (2011, p. 89), as providências solicitadas pelo defensor ao órgão investigatório podem ter por fim “rebater determinado ato investigatório”, para influenciar as decisões a serem tomadas no curso do procedimento. Outrossim, deverá o advogado atuar no sentido de entender as possíveis premissas das quais a autoridade policial pode partir para a construção do convencimento necessário para o indiciamento e, a partir dessas, diligenciar no sentido de construir um conjunto probatório apto a comprovar a inocência do investigado ou, no mínimo, suscitar a dúvida razoável na persuasão do investigador.

Sendo assim, a partir do acesso aos autos que permite a compreensão da dimensão do objeto da investigação. Dessarte, a partir do conhecimento dos autos, é incumbência do advogado analisar estrategicamente o estado da investigação criminal e, diante da moldura fática que lhe é apresentada, requerer as diligências cabíveis (SILVA, 2020, p. 60) – que incluem, e não se limitam a, postular a oitiva de testemunhas, apresentar memoriais à autoridade policial, manter o investigado à disposição para prestar esclarecimentos perante o órgão investigatório e realizar eventual acareação entre diferentes provas dos autos, apontando as incongruências que enfraquecem os indícios de materialidade e autoria.

A iniciativa probatória por parte da defesa técnica aproxima-se às origens do Estado Democrático de Direito, sob o espectro da paridade de armas, buscando a garantia de uma relação harmônica entre órgão investigador e acusado. Neste ponto, SILVA (2020, p. 60) é assertivo quando afirma que “não é por outra razão que o Estatuto da OAB (Lei n. 8906/1994) e a Lei Orgânica da Defensoria Pública (Lei Complementar n. 80/1994) asseguram ao indiciado a assistência jurídica desde o inquérito policial e até após o trânsito em julgado”.

Ainda, não se desconhece o fato de que inexiste legislação específica sobre a atuação da defesa técnica na investigação preliminar, no entanto, a partir da exegese de instrumentos normativos, como o Provimento nº 188/18 do Conselho Federal da OAB, somados à princípios constitucionais, como o da ampla defesa e do contraditório, a postura ativa se faz possível. De igual forma, nesta fase inicial da persecução, há de se garantir a presença efetiva do advogado e do defensor público, sendo garantido a estes as prerrogativas inerentes à profissão, em especial, a inviolabilidade do escritório ou local de trabalho e a comunicação pessoal e reservada com o investigado.

Destarte, torna-se premente a adoção de uma postura ativa pelo advogado no curso da investigação criminal, na medida em que deve haver uma visão crítica do inquérito policial para que, a partir da linha investigativa adotada pela autoridade responsável, sejam requeridas as diligências cabíveis e/ou apresentadas as provas já obtidas e disponíveis. Noutras palavras, o defensor precisa compreender que, em termos de estratégia no patrocínio dos interesses de seu cliente, não cabe a atuação passiva, que aguarda o deslinde da investigação e o início da ação penal para, só então, dar início à atividade probatória.

 

4         O artigo 14-a do Código de Processo Penal: privilégio e ausência de isonomia na inovação oriunda da Lei Anticrime

A promulgação do cognominado “pacote anticrime” acarretou em inúmeras mudanças no processo penal, ocasionando uma verdadeira devassa no código de processo.  Possivelmente, esta foi a reforma mais ampla pela qual a legislação fora submetida. O objeto de análise deste trabalho é o art. 14-A, que determina a possibilidade constituição de defensor no inquérito para uma categoria específica, nos casos relacionados ao uso de força letal. Vejamos.

O caput do art. 14-A refere que “nos casos em que servidores vinculados às instituições dispostas no art. 144 da Constituição Federal figurarem como investigados em inquéritos policiais, inquéritos policiais militares e demais procedimentos extrajudiciais (…)” ou seja, a disposição legal possui um rol taxativo de destinatários, sendo eles os servidores vinculados à segurança pública (I – polícia federal; II – polícia rodoviária federal; III – polícia ferroviária federal; IV – polícias civis; V – polícias militares e corpos de bombeiros militares).

Segue a disposição afirmando que “cujo objeto for a investigação de fatos relacionados ao uso da força letal praticados no exercício profissional, de forma consumada ou tentada, incluindo as situações dispostas no art. 23 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), o indiciado poderá constituir defensor” e o parágrafo §1º determina que “o investigado deverá ser citado da instauração do procedimento investigatório, podendo constituir defensor no prazo de até 48 (quarenta e oito) horas a contar do recebimento da citação”, ou seja, há um nítido privilégio aos servidores públicos pertencentes as instituições do art. 144 da CF que serão citados da instauração do procedimento investigatório para, querendo, constituir defensor para acompanhar o desenrolar da investigação.

A  insistência  do  legislador  no  procedimento  é  tão  grande  que  o  parágrafo  §  2º  prevê  que  nos  casos de escoamento do prazo de 48 horas sem a constituição defesa a “autoridade responsável pela investigação deverá intimar a instituição a que estava vinculado o investigado à época da ocorrência dos fatos, para que essa, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, indique defensor para a representação do investigado.” Ainda que o caput do art. 14-A utilize a palavra “poderá”, a leitura do §2º deixa nítido que a constituição de defesa é inevitável, é praticamente uma obrigação na medida em que o órgão à qual o servidor estava vinculado deverá indicar o defensor em caso de omissão do investigado. Ou seja, o legislador quer, inevitavelmente, que o agente de segurança esteja acompanhado de defesa técnica desde a instauração do inquérito criminal.

Não se desconhece que o advogado, como salienta LIMA (2020, p. 121), é “ator fundamental no acesso ao Poder Judiciário – enquanto instrumento do direito constitucional de petição e da consequente prestação jurisdicional (…)”, e que “o advogado tem papel essencial na efetivação do devido processo legal ao promover, com sua atuação técnica, a ampla defesa e o contraditório em favor dos sujeitos processados”. É inegável, portanto, a importância da defesa técnica desde a investigação preliminar e a efetivação das prerrogativas da advocacia refletem na defesa do constituinte desde a fase de investigação, e depois, com o oferecimento de acusação. Contudo, o que se no art. 14-A do CPP é uma inovação decorrente de má elaboração da do dispositivo legal e das consequências dentro da ritualística processual.

A legislação advinda do pacote anticrime, afetadas em outros institutos do código penal e processo penal são oriundas do atual momento político vivenciado no país. É importante contextualizar que  o  atual  Presidente  da  República,  Jair  Bolsonaro,  desde  o  período  eleitoral  em  2018,  teve  como  bandeira de sua campanha a ampliação dos institutos em prol dos agentes de segurança pública, especialmente os dispositivos voltados para a “proteção” e expansão da abrangência da legítima defesa. A Lei nº 13.964/2019, como decorrência lógica, é fruto desta política criminal de expansão e maximização da proteção aos agentes de segurança, de uma forma desmedida.

Se tratando do art. 14-A do CPP, como adverte NUCCI (2020, p. 54), há um verdadeiro exagero “pois se prevê a citação do investigado, subvertendo-se toda a ideia de separação de uma investigação e de um processo-crime”. O autor questiona a nova sistemática posta pelo artigo em comento: “quer-se transformar o inquérito em procedimento em contraditório? Se assim for, o ideal é ampliar para todos os investigados e não apenas aos policias que, aparentemente, praticaram crimes no exercício da função.” (NUCCI, 2020, p. 54). Do que se depreende, o legislador criou uma dialética dentro do inquérito policial  que  beneficia  apenas  os  agentes  de  segurança  pública,  excluindo  os  demais  investigados  de  tal procedimento. Aliás, é nítido a ausência de técnica do legislador ao utilizar o termo “citação”, na medida em que este “é reservado par o ato procedimental que dá conhecimento ao réu acerca de um processo que lhe move o autor; na esfera criminal, o órgão acusatório ou a vítima.” Caso o objetivo fosse “avisar o investigado do inquérito em andamento, conclamando-o a constituir defensor, deveria ter sido usado o termo intimação” (NUCCI, 2010, p. 93).  Em linhas gerais, é possível identificar a ausência de isonomia que o dispositivo legal ocasiona, privilegiando unicamente os agentes de segurança pública.

A lição de DA SILVA (2020, p. 222) é categórica sobre o princípio da isonomia e a aplicação da lei penal não deve ser interpretada como a aplicação da mesma pena para réus distintos quando cometem o mesmo delito, “mas deve significar que a mesma lei penal e seus sistemas de sanções hão de se aplicar todos quantos pratiquem o fato típico nela definido como crime” e prossegue afirmando que “as condições reais de desigualdade condicionam o tratamento desigual perante a lei penal, apesar do princípio da isonomia assegurado a todos pela Constituição (art. 5º).”

Sob este aspecto, é inegável que o art. 14-A do CPP gera uma desigualdade entre os investigados, na medida em que somente aqueles pertencentes as instituições do art. 144 da CF serão citados e suas instituições serão, ao final, responsabilizadas pela constituição de defesa para o acompanhamento do inquérito.

Outros três dispositivos foram vetados do presente artigo, ocasião dos parágrafos 3º, 4º e 5º. Na fundamentação, assim dispõe, verbis:

A propositura legislativa, ao prever que os agentes investigados em inquéritos policiais por fatos relacionados ao uso da força letal praticados no exercício profissional serão defendidos prioritariamente pela Defensoria Pública e, nos locais em que ela não tiver instalada, a União ou a Unidade da Federação correspondente deverá disponibilizar profissional, viola o disposto no art. 5º, inciso LXXIV, combinado com o art. 134, bem como os arts. 131 e 132, todos da Constituição da República, que confere à Advocacia-Geral da União e às Procuradorias dos Estados e do Distrito Federal,  também  Função  Essencial  à  Justiça,  a  representação  judicial  das  respectivas  unidades  federadas, e destas competências constitucionais deriva a competência de representar judicialmente seus agentes públicos, em consonância com a jurisprudência do Supremo Tribunal (v.g. ADI 3.022, rel. min. Joaquim Barbosa, j. 2-8-2004, P, DJ de 4-3-2005)

Já  o  §  6º  determina  a  aplicação  em  relação  do  artigo  em  relação  aos  membros  das  Forças  Armadas “desde que os fatos investigados digam respeito a missões para a Garantia da Lei e da Ordem”.

No atual momento e conjuntura política e social, de supressão de garantias e repressão estatal, a presença do defensor deve ser concebida como um instrumento de controle da atuação do Estado e de seus órgãos no processo penal, garantindo o respeito à lei e à justiça (LOPES JR.; GLOECKNER, 2013, p. 478), respeitando o princípio da isonomia de partes.

Pode-se afirmar, portanto, que a efetiva garantia do exercício pleno das prerrogativas garante o exercício da ampla defesa por meio da defesa técnica, da defesa efetiva como verdadeiro baluarte da Constituição Federal. Inevitável, sob esta linha, que o dispositivo do art. 14-A do CPP elege uma classe para privilegiar e acarreta uma discrepância na sua aplicabilidade por ter sua abrangência restrita.

 

5         Considerações finais

A investigação preliminar criminal tratada com indiferença e desinteresse acadêmico, conforme já advertia FERRAJOLI (1989, p. 767), possui como principal instrumento, no Brasil, o inquérito policial, de matriz notadamente inquisitorial e autoritária, que atravessa uma crise e demanda leitura crítica à luz da ordem Constitucional vigente. Os princípios e garantias de valorização do indivíduo instituídos pela Constituição Federal de 1988 exigem o abandono da concepção do sujeito investigado como mero objeto das autoridades públicas e da investigação (LOPES JR.; GLOECKNER, 2013, p. 223), para adaptar os mecanismos encontrados na fase preliminar do processo penal à realidade contemporânea e ao paradigma constitucional de processo penal (GIACOMOLLI, 2011, p. 7).

Partindo-se da previsão constitucional de indispensabilidade do advogado à administração da justiça, prevista no artigo 133 da Constituição Federal, percebeu-se um desenvolvimento, ainda que incipiente, do arcabouço normativo brasileiro no sentido de incrementar o papel do defensor na fase investigatória, como papel essencial e indisponível ao exercício da ampla defesa. Nesse diapasão, a Lei nº 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia), com as alterações introduzidas pela Lei nº 13.245/2016, positivou uma série de direitos do advogado, dentre os quais, o de prestar plena assistência aos sujeitos investigados no decorrer da fase administrativa, prevendo, também, a atuação ativa durante a apuração das infrações penais. Seguindo a mesma lógica, o projeto de novo Código de Processo Penal, ainda em trâmite na Câmara dos Deputados, estabelece expressamente, dentre o título destinado à investigação preliminar, a possibilidade do defensor tomar a iniciativa na indicação de meios de prova em benefício do investigado, buscando eliminar a lógica puramente inquisitiva e de interesse unilateral à formação da acusação.

Muito embora a doutrina e jurisprudência relativizem e interpretem restritivamente a garantia ao contraditório na investigação preliminar, deve-se caminhar para uma maior eficácia das garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório, respeitando-se minimamente o prescrito no artigo 5º, LV, da Constituição Federal.

Nitidamente, do que se depreende do presente articulado, a efetivação das prerrogativas da advocacia no inquérito policial tem como consequência a confirmação de uma defesa efetiva ainda no inquérito policial, que notadamente é marcado pela ausência de defesa e contraditório. Constituindo mecanismos intrínsecos ao direito de defesa, conforme leciona BERTOLUCI (2018, p. 174), as prerrogativas do advogado mostram-se indispensáveis ao desenvolvimento da justiça, na medida em que atua como interlocutor do Estado Democrático de Direito.

A reforma parcial do processo penal operada através do cognominado Pacote Anticrime alterou inúmeras disposições na legislação processual e material. Reformas e alterações em legislações tão sensíveis devem ser elaboradas com o mais alto tecnicismo jurídico e linguístico, a fim de não deixar lacunas, além de necessitar maturação e discussão aprofundada pela comunidade jurídica. Elaborada a partir de ideais de ampliação de proteção aos agentes de segurança pública, a inclusão do artigo 14-A do atual Código de Processo Penal restringe sua aplicabilidade a uma classe específica de investigados, ferindo o princípio da isonomia no direito processual penal.

Reitera-se que o exercício pleno da defesa e das prerrogativas da advocacia desde a investigação preliminar é indiscutível e inegociável, constituindo garantia fundamental pela Constituição Federal.

Assim, é cristalino que o dispositivo do artigo 14-A do CPP elege uma classe para privilegiar e acarreta uma discrepância no âmbito de abrangência por ter sua aplicabilidade restrita a uma categoria, a dos agentes de segurança pública, ferindo o princípio da isonomia da aplicação da lei.

 

Referências

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Marcos Pippi Fraga, Alberto Ruttke e Felipe Mrack Giacomolli.
Por: Marcos Pippi
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